Dores emocionais pesam na balançaNo Maranhão, mais de 24 mil crianças lutam contra o excesso de peso.
A obesidade infantil vai muito além da balança. É o que revela a história de Lucas Portela*, menino de 11 anos, morador do Maranhão, que pesa quase o dobro do recomendado para sua idade. Com o tempo, comportamentos de risco, como o ato de comer escondido durante a madrugada e o isolamento social acenderam o alerta na família.
Ao procurarem ajuda médica, veio à tona uma dor silenciosa: o menino era vítima de abuso sexual há mais de dois anos. A comida havia se tornado um refúgio emocional. “Ele não sabia como contar. E a única forma de lidar com a dor era comendo. Comia para calar o que sentia”, contou a mãe, emocionada.
A influência das emoções na obesidade infantil.
Segundo a psicóloga da Hapvida, Karolayne Oliveira, a obesidade pode ser um sinal de sofrimento psíquico. “Situações de violência, abandono ou trauma podem levar a uma alimentação compulsiva como forma de proteção”, explica ela. O fenômeno é conhecido como alimentação emocional, quando a criança come não por fome real, mas para lidar com sentimentos como tristeza ou ansiedade. “Comer sem estar com fome, esconder alimentos ou sentir culpa após comer são sinais de alerta”, reforça a especialista.
Diante disso, o acompanhamento psicológico se mostra essencial. “Não se deve focar apenas no peso, mas compreender a história emocional por trás da alimentação”, orienta Karolyane. Estabelecer rotinas, criar horários fixos para refeições e oferecer um ambiente de afeto e escuta são passos importantes na superação do trauma. A psicoterapia infantil ajuda a criança a reconhecer e verbalizar sentimentos antes sufocados pela comida.
Karolyane reforça que a escuta sensível pode salvar uma vida. “Às vezes, o corpo da criança está gritando por socorro, mas ninguém percebe. Precisamos acolher, e não julgar. O que está por trás de um prato cheio pode ser um vazio emocional enorme. Quando há espaço para que a criança fale, ela começa a se libertar do que a machuca”, frisa.
A psicóloga ainda alerta para a importância da atuação conjunta entre família, escola e profissionais de saúde. “Todos precisam olhar com mais cuidado. A criança precisa ser vista como um ser completo, e não apenas como alguém que precisa emagrecer. O foco é a saúde emocional, o bem-estar e a construção de segurança”, conclui.
Dados
No Maranhão, os números confirmam a gravidade do cenário. Mais de 24 mil crianças foram diagnosticadas com obesidade em 2024, segundo a Organização Linha de Cuidado do Sobrepeso e Obesidade (LCSO). Só em São Luís, foram 1.298 casos de obesidade (5,17%) e 2.034 com sobrepeso (8,11%). Em outro levantamento, feito pela Pastoral da Criança com 30 mil crianças, 3% eram obesas e quase 7% com sobrepeso. O percentual é maior do que o índice de desnutrição, por exemplo.
Confirmando as estatísticas, hábitos alimentares prejudiciais ainda fazem parte da rotina alimentar de muitas crianças no Maranhão. O Sistema de Viligância Alimentar e Nutricional (Sisvan) aponta que 33% consomem ultraprocessados com frequência, 20% tomam bebidas adoçadas regularmente e 17% ingerem doces com frequência. Além disso, 16% consomem macarrão instantâneo e salgadinhos, e 7% têm hambúrgueres e embutidos como parte da dieta semanal.
Como regular a alimentação sem gerar traumas
A nutricionista da Hapvida e especialista em nutrição infantil, Carmen Lúcia Pavani, também destaca que mudar hábitos alimentares não deve ser um processo punitivo. “Não adianta retirar o doce da criança se ela está adoecida por dentro. Primeiro é preciso curar a relação com a comida. Comer precisa voltar a ser um momento de prazer, não de culpa ou de fuga”, orienta.
Carmen defende que a educação alimentar deve ser baseada no afeto. “Quando a criança participa do preparo das refeições, ela sente orgulho. Quando é ouvida nas suas preferências, sente pertencimento. Isso fortalece vínculos e torna a mudança mais natural e duradoura.” Para ela, o sucesso está na parceria entre os cuidadores e a criança, sem imposições rígidas, mas com acolhimento e criatividade.
Hoje, com suporte psicológico e orientação nutricional, Lucas caminha rumo à recuperação. A alimentação deixou de ser um esconderijo, e o sorriso voltou ao rosto. “Ele já consegue dizer quando está triste, e isso é uma vitória enorme”, conta a mãe. Para a psicóloga Karolyane, a trajetória do menino revela que é preciso ouvir o corpo das crianças. E, como resume Carmen Lúcia: “Cada prato carrega uma história. E quando escutamos com sensibilidade, ajudamos a transformar não só os hábitos, mas a vida”, completa.
*Nome fictício usado para preservar a identidade do menor.